A FÍSTULA

A fístula obstétrica é uma das mais graves e trágicas lesões resultantes de um trabalho de parto complicado, demorado, e sem assistência clínica atempada e adequada. Outras complicações de parto são a morte materna e a morte neonatal e mesmo lesões neurológicas na criança.

Durante o trabalho de parto, o qual se pode prolongar por dias de sofrimento excruciante, a cabeça do bebé comprime e destrói os tecidos moles da pélvis. Estes, por compromisso vascular, ficam danificados com gravidade, acabando por morrer e deixar um orifício entre a bexiga e a vagina (fístula vesicovaginal), ou entre o recto e a vagina (fístula retovaginal) ou ambos, no canal de parto.

O trauma do canal vaginal também pode ocorrer na sequência de uma violação sexual, lesões cirúrgicas acidentais relacionadas com a gravidez e operações invasivas para induzir o aborto; mas, praticamente, todas as ocorrências de fístula são resultantes de partos obstruídos.

A fístula obstétrica é das mais graves e trágicas lesões resultantes de um trabalho de parto complicado, demorado, e sem assistência clínica atempada e adequada, do qual podem resultar ainda a morte da mãe e do bebé ou lesões neurológicas na criança.

A Fístula

IMPACTO NA VIDA DAS MULHERES

As consequências da fístula obstétrica são devastadoras para as mulheres, tanto do ponto de vista sanitário como social e económico. Apresentando um risco de vida considerável – em cerca de 90 por cento dos casos a criança não sobrevive, evento traumatizante para qualquer mãe –, a mulher com fístula desenvolve incontinência urinária crónica, deixando de conseguir controlar a saída da urina e (ou) fezes. Desta incapacidade resulta um mau cheiro persistente que leva à humilhação permanente da mulher e, não raro, à discriminação e abandono por parte do marido e família, e à ostracização pela comunidade.

Traumatizadas e a braços com graves problemas de saúde crónicos – úlceras, problemas renais, danos nos nervos das pernas que redundam em paralisia ("pé caído ou pé pendente"), infertilidade e até mesmo a morte, as mulheres com fístula ficam marcadas pelo estigma que as condena à exclusão social.

Fragilizadas, desprovidas de auto-estima e entregues a si próprias, elas tornam-se vítimas de depressão, isolamento social e, porque incapazes de cumprir rotinas básicas como ir à machamba, ao mercado, ao fontanário, à igreja ou usar o transporte público, acabam na mais profunda solidão e miséria.

Hanifa – 18 ANOS

“Fiquei grávida com 17 anos e tive que casar. O parto foi muito complicado. Perdi o meu bebé e comecei a perder urina. O meu marido abandonou-me e não pude continuar os estudos. Vi outras raparigas com uma vida normal e pensei que era azarada e amaldiçoada”.

A FÍSTULA NO MUNDO

A fístula obstétrica atinge entre 2 milhões a 3 milhões de mulheres e raparigas, principalmente na África Subsaariana e grande parte da Ásia do Sul, e todos os anos faz entre 50 000 a 100 000 novas vítimas.

Erradicada do mundo industrializado, a fístula obstétrica atinge ainda entre 2 milhões a 3 milhões de mulheres e raparigas, principalmente na África Subsaariana (Quénia, Mali, Níger, Nigéria, Ruanda, Serra Leoa, África do Sul, Benim, Chade, Malawi, Mali, Moçambique, Níger, Nigéria, Uganda e Zâmbia) e grande pate da Ásia do Sul (Afeganistão, Bangladesh, Índia, Paquistão e Nepal). E, de acordo com estimativas da Organização Mundial de Saúde, todos os anos entre 50 000 a 100 000 mulheres contraem a fístula obstétrica.

A persistência destes números denuncia a desigualdade global e pobreza, bem como o falhanço dos sistemas de saúde e sociais em proteger a saúde e os direitos humanos das mulheres e raparigas mais pobres e mais vulneráveis. A maioria destas regiões simplesmente não possui centros bem equipados e com pessoal clínico treinado onde as mulheres com partos obstruídos possam ter um parto por cesariana.

A falta de estradas e de sistemas de transporte que permitam às mulheres alcançar um hospital para apoio de emergência, uma vez que os centros hospitalares com maior capacidade se encontram distantes das zonas rurais, onde a fístula tem maior prevalência, agrava a situação. Além disso, havendo meios para uma cirurgia reconstrutiva de fístulas, na maioria dos casos, e por se tratar de mulheres em situação de pobreza extrema, não há dinheiro para custear a operação.

DIA INTERNACIONAL DA FÍSTULA OBSTÉTRICA

Face a um problema altamente incapacitante, o Fundo das Nações Unidas para a População (FNUAP) e os seus parceiros juntaram-se, em 2003, para lançar uma campanha mundial contra a fístula obstétrica. Em Novembro de 2010, a Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU) aprovou uma resolução para combater a fístula obstétrica, sob proposta dos países africanos.

Três anos depois, a 23 de Maio de 2013, e sob proposta da União Africana (UA) aprovada pela ONU, celebrou-se pela primeira vez o Dia Internacional pelo Fim da Fístula Obstétrica. A data visa promover o compromisso dos Estados com a eliminação daquela condição – considerada essencial para alcançar o Objectivo 3 de Desenvolvimento Sustentável da ONU, mas também os Objectivos 5 e 10 – que, sendo terrível, é evitável e tratável. Não obstante, menos de 20 mil mulheres são tratadas à fístula obstétrica por ano.

A persistência da Fístula Obstétrica denuncia a desigualdade global e pobreza, e o falhanço dos sistemas de saúde e sociais em proteger a saúde e os Direitos Humanos das mulheres e raparigas mais pobres e vulneráveis.

A FÍSTULA EM MOÇAMBIQUE

Com base no cálculo de três a quatro fistulas por cada mil nascimentos, e sendo que ocorrem cerca de 900 mil partos por ano em Moçambique, é provável que haja, todos os anos, entre 300 e 400 novos casos de fístula - ou seja, uma por dia em todo o país.

Em Moçambique, estima-se que o problema da fístula obstétrica afecte cerca de cem mil mulheres, cuja esmagadora maioria, e à semelhança do que ocorre em outros países em vias de desenvolvimento, é rural e pobre. As taxas mais elevadas de aparecimento de fístulas ocorrem nas zonas Norte e Centro do país – as de menor investimento tanto na esfera económica como sociocultural – designadamente nas províncias de Niassa, Tete, Zambézia, Nampula e Inhambane.

A elevada prevalência de fístulas nestas zonas prende-se, não só, com a baixa cobertura assistencial ao parto nas zonas rurais e a falta de estruturas, equipamentos e pessoal clínico treinado, mas, e também, com factores de natureza cultural.

O CONTRIBUTO DA UNIÃO PREMATURA

Entre estes, avultam os "casamentos prematuros", um eufemismo para descrever uma união forçada e, assim, um atentado aos Direitos Humanos, ao envolverem crianças sem maturidade para tomarem decisões de magna importância e sem poder para as recusarem. Em algumas destas zonas, a tradição cultural encaminha a mulher púbere para essa união e "o ser mãe" é um indicador de acesso ao estatuto de mulher casada e adulta.

De acordo com estimativas da ONU publicadas em 2010, Moçambique é o 11.º país do Mundo com a maior prevalência de uniões prematuras; quase 56% das mulheres no país "casam" antes dos 18 anos e, destas, a percentagem de "casadas" antes dos 15 anos de idade é de 11,2% nas áreas urbanas e 21,4% nas rurais.

CAMINHO NACIONAL PARA O TRATAMENTO É LENTO E CURTO

O tratamento de fístulas em Moçambique foi introduzido pelo italiano Aldo Marchesini, que chegou ao país em 1975. Durante anos, foi o único cirurgião a operar fístulas no país. Quanto ao Estado Moçambicano, só em 2002 é que o Ministério da Saúde (MISAU), com apoio do FNUAP, iniciou um Programa Nacional de tratamento de fístulas e de formação de técnicos de saúde para prevenção e tratamento das fístulas. Desde então foi mantendo, de forma irregular, cursos de formação e missões de formação e tratamento em áreas de maior prevalência de fístulas.

Em 2007, o MISAU melhorou o apoio à problemática da fístula e às campanhas para o seu combate e, no ano seguinte, o Governo desenvolveu o Plano Integrado para o Alcance dos Objectivos 4 e 5 de Desenvolvimento do Milénio 2009-2012. O documento definiu áreas prioritárias de intervenção visando reduzir a morbilidade e mortalidade materna, neonatal e infantil, entre as quais a definição e implementação de uma Estratégia Nacional de Prevenção e Tratamento de Fístula Obstétrica, publicada em 2012.

Apesar das intenções plasmadas no documento, a situação não conheceu melhorias substanciais, e hoje, por exemplo, ainda há apenas cinco unidades hospitalares em todo o Moçambique com rotina de trabalho nesta área: Hospital Central de Maputo, Hospital Central da Beira, Hospital Central de Nampula, Hospital Provincial de Quelimane, e Hospital Provincial de Lichinga, no Niassa.

Além disso, grande parte das fístulas ocorre, hoje, dentro das próprias Unidades Sanitárias devido à fraca qualidade dos seus recursos humanos e materiais.

Aldo Marchesini

O PADRE PIONEIRO


Sacerdote dehoniano e cirurgião, o italiano Aldo Marchesini, que trabalha na cidade de Quelimane, província da Zambézia, chegou a Moçambique em 1975 e, logo nesse ano, começou a operar fístulas no Hospital Rural de Mocuba, na Zambézia. Durante muitos anos, foi o único cirurgião a operar fístulas em Moçambique e o primeiro médico a dedicar-se ao tratamento da fístula, fazendo cirurgias, angariando fundos - não só para financiar o tratamento das pacientes, mas também para pagar o seu transporte, alimentação e roupas - e formando profissionais. Raptado várias vezes durante a guerra civil de Moçambique (1977-1992), Marchesini nunca desistiu da sua missão e, em 1986, organizou a primeira campanha de operações e de ensino médico de fístula em Inhambane, tendo como pupilos os médicos Caetano Pereira e Igor Vaz (fundador e actual Director da Focus Fístula). A sua dedicação e serviço em prol do mais desfavorecidos valeram-lhe diversas distinções, nacionais e internacionais, a último das quais o Prémio de População das Nações Unidas de 2014 – um prémio estabelecido em 1981 pela Assembleia Geral das Nações Unidas para reconhecer acções proeminentes nas áreas de população e saúde.

Grande parte das fístulas ocorre, hoje, dentro das próprias Unidades Sanitárias do País devido à fraca qualidade dos seus recursos humanos e materiais.

PERFIL DA MULHER MOÇAMBICANA COM FÍSTULA

O único estudo feito sobre pacientes com fístula em Moçambique, realizado pela Universidade Católica, analisou 84 mulheres no Hospital Central da Beira entre 2010 e 2011. As conclusões mostram um panorama muito semelhante ao internacional.